"Das inúmeras associações que a comida possa trazer para alguém, talvez a mais prazerosa, seja a que remeta esse alguém para um cantinho perdido na memória e no tempo onde o mingau ou biscoito especial evoca também o carinho da mãe, o cuidado da avó, a hora do lanche sentado na varanda de casa e tantas outras lembranças particulares.
A lembrança mais antiga relacionada à comida, que ora me ocorre, é a do mingau quentinho servido em mamadeira, que minha mãe me trazia todos os dias pela manhã antes mesmo de eu levantar para ir à escola. Por um daqueles imprevistos que têm o poder de mudar o rumo da história, desisti daquela gostosura. Por esquecimento ou pressa, não me lembro mais, deixei de tomar no horário devido o tal mingau e eis que na escola, minha mãe apareceu de mamadeira em punho preocupada com a saúde da filha mais velha, logo eu, uma "adulta" de cinco anos. A vergonha foi tanta que nunca mais permiti que fosse feito o mingau, retirado precocemente da minha dieta da madrugada.
Mais ou menos na mesma época, lembro que minha mãe fazia em casa uns biscoitos de maisena assados em tampas de panela, pois assadeira
naquele tempo, era luxo e desconhecimento. Mal a fornada saía, o bando de meninos avançava em cima, sem ao menos dar tempo para que eles esfriassem. Quando viriam outros? Biscoito de gordura "trans" ainda não existia, ou pelo menos nós não conhecíamos.
Havia ainda um senhor moreno e bem alto, vestido sempre de branco, que de vez em quando passava na rua com um tabuleiro de madeira na cabeça a vender amendoim e açúcar "preto”. Nossa obrigação era avisar mamãe a tempo, para que os ingredientes do pé-de-moleque estivessem garantidos. Lembro dele até hoje, com seu passo manso, descendo o tabuleiro coberto e nós, os irmãos, a sonhar com o doce acrescido de leite condensado, cortado em quadradinhos melosos…
Ontem e hoje: o antigo Mercado das recordações gastronômicas da Patrycia…
Minhas primeiras saídas para o centro, ou melhor, para o "comércio", estão mentalmente ligadas a uma lojinha no Mercado, cuja dona tinha na porta da geladeira, dentro de um copo gelado, umas bolinhas de massa recheadas de mel. Ao serem mordidas, deixavam cair uma calda dourada. Inesquecível! Por anos a fio tentei descobrir que doces eram esses.
Talvez minha busca tenha finalmente chegado ao fim, pois dona Maria Cosson, quituteira das antigas lá de Xapuri e fiel depositária de tantas e tão boas tradições culinárias, concedeu uma entrevista recente durante a qual explicou que prepara esses doces por encomenda. Com grande generosidade, essa receita foi repassada para um emissário especial com a promessa inclusive de ser preparada na minha presença, o que espero seja feito em um futuro brevíssimo.
Foi na rua que hoje abriga coloridas lojas e o Mercado restaurado que comi nem sei em que ano, meu primeiro cachorro-quente, num carrinho estacionado na calçada, quase noite. O toque de novidade, misturado à salsicha com verduras e molho de tomate no pão macio, fui descobrir muitos anos depois, numa lanchonete de cidade grande: era do cominho aquele cheiro inebriante, do tipo ame-o ou deixe-o. Depois que o descobri, nunca mais pude largá-lo.
Foi na Epaminondas Jácome que Patrycia comeu seu primeiro cachorro quente…
Assim como eu, toda a Humanidade conviveu e convive com as especiarias. Antes, nos séculos passados, eram utilizadas abusivamente, como forma não só de conservação dos alimentos, mas também demonstração de riqueza e poder. Hoje, consegue-se extrair delas o que tem de melhor, seja o sabor inconfundível, seja o perfume característico.
Nesse baú sem fim de lembranças, não posso deixar de perceber a importância que a culinária sempre teve na minha vida: invariavelmente os grandes e pequenos acontecimentos estiveram e estão ligados, de uma forma ou de outra, aos sabores, cheiros, texturas e descobertas de novos pratos ou o reconhecimento familiar de outros tantos, que formam aquelas iguarias que constituem nossa história pessoal.
Seja como sobrevivência, cultura ou prazer, através das receitas nós nos reaproximamos de nossos antepassados, nos reaproximamos de quem somos, estabelecemos uma maneira de ser, um modo de vida. Fazemos por fim as pontes com os amigos e com o mundo ao nosso redor, revivendo ou criando um espaço familiar e aconchegante.
Laurence Fishburne e Freddy Rodriguez no filme "Bobby"
No filme “Bobby” (exibido recentemente pelo Cinemacre), que trata do assassinato do senador americano Robert Kennedy no Ambassador Hotel em 1968, o diretor Emilio Estevez conseguiu relacionar várias histórias paralelas vividas naquele dia. Dentre elas, a que mais me chamou atenção foi a do chefe de cozinha interpretado pelo ator Laurence Fishburne: ao servir sua famosa torta de morango, ele explica para os companheiros latinos o porquê das receitas iniciais da torta terem fracassado. Ele queria reproduzi-la da mesma forma que a mãe e a avó costumavam prepará-la, para lembrar delas através da comida, mas só conseguiu acertar quando juntou à receita sua própria experiência.
O que procuramos na receita familiar, no encontro de amigos, é o sabor perdido lá atrás, de um tempo que foi passando e trazendo junto nossas melhores lembranças. Tempo de chupar laranja até ficar de barriga dura, esticada, deitados em varanda ou sob a sombra de uma árvore. Tempo do descompromisso e da liberdade, da cerca pulada para roubar goiaba…
Bolo de Chocolate com café: exemplo de comidinha de alma…
Nina Horta, chef, cronista e dona do Buffet Ginger em São Paulo, no seu livro “Não é sopa” já fala em "comida de alma", que reconforta, acalma, a que é igual colo de mãe. Por outro lado, nossa cozinha brasileira, infinita, plural, resultado de tantas culturas diferentes, foi de tal forma amalgamada que até mesmo nossa cozinha amazônica, tão autêntica, espelha essa mistura: afinal, de que mão portuguesa saiu o paio que começou a temperar a maniçoba?
Os filhos da Patrycia: o Mateus é fã do Strogonoff, enquanto o Ian prefere a Lasanha…
Do “baião-de-dois” nordestino ao churrasco gaúcho, da feijoada que se come no país todo ao tutu de feijão mineiro, e aos peixes amazonenses, esse Brasil segue com dezenas de pequenos Brasis e suas receitas típicas e maravilhosas. E tem até mesmo as não-receitas, motivo pelo qual estou a escrever estas linhas e vou contar o "causo", pois não me pediram segredo: nos muitos anos que passei fora de Rio Branco, me meti a cozinheira por prazer e necessidade; afinal, para alimentar os "bruguelos" com comidinha da mãe, precisei comprar revistas e livros, cilindro de massa e forminhas diferentes. Já assei um bocado de bolo e fiz muito arroz com feijão. Ocorre que toda cozinheira que se preza não pode atender somente à sua prole e marido, portanto, para ser autêntica, terá que adotar mais alguns mortais: os amigos queridos utilizados como cobaias das experimentações culinárias.
Com sorte e a depender da cozinheira, quase sempre esses amigos são brindados com várias comidinhas carinhosas. E numa destas experimentações, bem conhecidas dos mineiros, meti-me com umas cascas de limão que ao invés do destino previsível, foram despidas de sua parte branca e cortadas em tirinhas muito finas, postas de molho em várias águas, fervidas outras tantas e aí, depois de perderem qualquer amargor mais forte, foram banhadas várias vezes em calda de açúcar até se convencerem de que não há amargor que resista a tanto amor, ops, açúcar.
Nesta fase são, finalmente, colocadas para secar em peneira, quando então jogam-se as bichinhas em um prato de açúcar cristal, vira-se pra lá e pra cá e eis aí um petisco delicioso, que embaladinho em um saquinho de papel celofane com um laço de fita, ofertado para uns amigos do coração, fez com que um deles me pedisse pra contar a história. Quem disse que do limão só sai limonada?"
Nenhum comentário:
Postar um comentário