segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

QUANDO OS ACREANOS SE ENCONTRAM

Marcos Afonso, Sandro Gouveia e Adelaide Gonçalves, no Plebeu


Passei uns dias em Fortaleza, cuidando dos pequenos grandes filhos com mordomias de hotel cinco estrelas caseiro. Café na cama, sanduíche quente já cortadinho, suco bem gelado e almoço simples, porém caprichado. Aqui e ali, pequenas pausas para rever os amigos, dar uma olhada nos blocos de carnaval revigorados e espaços revitalizados como o lindo Mercado dos Pinhões.

Fortaleza tem uma grande colônia acreana, que por ironia do destino, fez o caminho de volta empreendido  por pais, avós e bisavós que saíram do interior do Ceará e se estabeleceram há muitos anos no Acre. Esses "retornantes", por assim dizer, hoje moram, estudam, trabalham ou simplesmente curtem essa cidade grande com jeito e cara de cidade do interior, cheia de pequenas e grandes belezas.

É por isso que nessa estadia consegui encontrar alguns amigos e até mesmo primos sem nenhuma prévia combinação. Talvez pelo tempo que morei por lá, não me sinta turista em nenhum momento e fico tão à vontade lá como cá. Quando lá estou, vivo topando com amigos e amigas, antigos colegas de trabalho e até mesmo parentes com a maior tranquilidade.

Das visitas combinadas, tive o maior prazer e orgulho de encontrar meu antigo professor de Química quando iniciei Agronomia na UFC, infelizmente abandonada por vários motivos. Vejam bem, antigo porque faz tempo que isso aconteceu, porque como registro da verdade tenho que dizer que o Sandro Gouveia é mais novo do que eu.

Formado lá mesmo na UFC, Sandro é filho de uma tradicional família do Acre e foi o responsável pela implantação do curso de Gastronomia da Universidade Federal do Ceará. Hoje, pela competência que tem, ampliou seu campo de atuação e é o diretor do ICA – Instituto de Cultura e Arte da UFC, responsável por vários cursos de graduação e alguns de pós-graduação, tão diferentes entre si quanto em grau de complexidade, entre os quais Jornalismo e Gastronomia, além de Música e Filosofia, para citar alguns.

Como todo bom acreano caprichoso que se preze, Sandro aguarda e monitora as novas instalações de alguns dos cursos que acompanha, lá no Campus do Pici, mas já deu a sua cara ao local, ao criar um espaço mais do que charmoso como sala de estudo e orientação. Peças de artesanato convivem com luminárias feitas de antigos dosadores de arroz e feijão, fouets e livros de culinária antigos e novos.






Do lado de fora, os jardins já recebem as primeiras mudas de hortelã, manjericão e capim santo, tudo produzido por ele em sua própria casa,  transformando o espaço em um local muito acolhedor. O acervo inicial ganhou um presente mais do que especial, vindo de outra apaixonada pelos livros e pela gastronomia: Adelaide Gonçalves, professora, historiadora, escritora, militante das artes e principal organizadora do primeiro “Gabinete de Leitura” de Fortaleza, o Plebeu. 


Eu e Adelaide, no Plebeu - Gabinete de Leitura


De seu acervo pessoal, em torno de mil livros e revistas foram doados para a biblioteca do espaço dedicado à gastronomia. Mas esse não é o primeiro ato de generosidade dessa professora dedicada. Miúda, acolhedora, dona de um acervo próprio de quase quinze mil livros, achou que era a hora de repartir o pão e o conhecimento. Assim começa a história do Plebeu -  Gabinete de Leitura,  hoje instalado no prédio da Associação Cearense de Imprensa, pertinho da Praça do Ferreira, não sem antes ter vindo de sala alugada com seus próprios recursos.





A experiência busca integrar os amantes da leitura, trabalhadores, pesquisadores e quem mais quiser. Nas palavras oficiais do espaço,  

" Com a proposta de ser um lugar de liberdade da palavra, leitura pública e compartilhamento de ideias, Plebeu Gabinete de Leitura é formado pelo acervo que veio da coleção particular da historiadora e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Adelaide Gonçalves. 

Inaugurado em 1 de maio de 2012, o local foi idealizado como um espaço aberto aos trabalhadores do Centro da cidade ou que passam por ali no dia-a-dia de trabalho.

 O objetivo da biblioteca é fazer com que os trabalhadores, pesquisadores e militantes possam ter acesso a livros, jornais, revistas, com assuntos relacionados a temas como reforma agrária, movimento sindical, história do Ceará, memória de Fortaleza, imprensa operária, clássicos literários e filosóficos, entre outros."

Fomos visitar o Plebeu a convite do Sandro, que gentilmente já havia me levado para ver as novas instalações da faculdade de Gastronomia. Adelaide Gonçalves conheceu o Acre e a Biblioteca da Floresta, tendo sido a ela apresentada pelo próprio governador Binho Marques, na época. Segundo ela, emocionou-se muito com o espaço, emoção que pudemos devolver ao entrar no Plebeu. Lá, o tempo parece não querer passar. 

Bonequinhas feitas por artesãs do interior mostram várias Frida Kahlo coloridas e exuberantes, tudo a ver com a original e nos recepcionam logo na entrada. Cristaleiras antigas e cheias de bossa escondem tesouros a serem descobertos por quem se aventura na pesquisa. Uma delas contém inúmeras edições do Manifesto Comunista, em várias línguas e edições, amealhadas por Adelaide ao longo de viagens e visitas a escolas, livrarias, sebos e universidades no país e no mundo.


Algumas das lindas bonequinhas Frida Kahlo, feita por artesãs do interior


Nas paredes, cores fortes e personalíssimas reproduzem quadros de Frida, artesanatos variados, bordados, memórias e vivências muito particulares e generosamente expostas a dividir a vida, a arte e o prazer pelos livros e pelo conhecimento. Os estudantes, pesquisadores, trabalhadores e acadêmicos estão sempre por ali. Sente-se no ar a vibração de séculos de história. As lutas do Ceará, suas peculiaridades também circulam pelo local, elegantemente vestidas. Até mesmo o Demolidor, "Orgam da Liga contra os Frades" constituída pela Mocidade Independente lança suas letras anticlericalistas pelo espaço.


O jornal O Demolidor (aqui em 05 edições, com organização de Adelaide Gonçalves, Allyson Bruno e Victor Pereira

Com recursos do próprio bolso, Adelaide e mais dois organizadores fizeram uma edição primorosa dos primeiros cinco números desse jornal publicado em Fortaleza em 1908, libertário e anticlerical. Difícil não desejar levar para casa um pouco dessa memória afetiva, dessas cores, desse afeto. Numa das paredes, deparo-me com um desenho feito por Estrigas, crítico de arte, pintor  e ilustrador, artista plástico da mais alta qualidade, além de odontólogo no início de sua vida profissional. 


Foto tirada do quadro que Estrigas deu de presente para Adelaide, exposto no Plebeu

Estrigas e Nice Firmeza, sua esposa, também artista plástica, primeira mulher a integrar a Sociedade Cearense de Artes Plásticas, na década de 50, educadora, exímia bordadeira, formaram um casal de ouro das Artes Plásticas cearenses e dividiram a vida e arte por mais de cinquenta anos. Lembrei-me com pesar, uma vez que os dois já são falecidos, de uma reportagem sobre eles publicada há muitos anos no jornal O Povo. Lá, o sítio no Mondubim, transformado por eles em mini-museu, recebia artistas, escritores, intelectuais e pessoas simples. Uma Nice sorridente dividia com os leitores seu prazer de viver e entre suas inúmeras atividades, também fazia doces e bolos, entre outros pitéus de criação própria com as abundantes frutas do sítio.

Fiquei com muito vontade de visitá-los no dia em que li aquela reportagem. Mesmo sem conhecê-los, tive imensa vontade de conhecer aquele sítio encantado, onde se via, o amor transbordava e se espalhava pelos caminhos. Mas o trabalho, os meninos pequenos, a falta de tempo e a coragem me impediram. Na visita à Adelaide, eis que me vem ela com um pequeno presente, de imenso valor para mim: uma cópia de um trecho do livro "Nice pinta e borda...faz arte!", publicado pela Expressão Gráfica, em 2008, de autoria de Lúcia Lustosa Martins.

Presente precioso, pois reproduz várias das receitas de Nice, inclusive com suas brincalhonas e irreverentes observações. Procurei o livro, mas ainda não o achei. Certamente, com mais tempo, encontrarei outros livros sobre o casal. Nosso querido amigo comum, Fernando França, artista plástico que vive em Fortaleza, outro acreano de raro talento, pintou o casal em telas separadas, no seu livro Diálogos, um projeto maravilhoso que retratou vários artistas cearenses. O livro foi lançado em exposição do mesmo nome e impresso pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, numa edição primorosa (Veja mais em http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/pinceladas-cearenses-1.682697).

E para não dizer que esqueci do Carnaval, Fortaleza, a exemplo de outras cidades país afora, como a nossa também, cada vez mais investe no carnaval de blocos, com apoio público para segurança e infra-estrutura nos espaços, mas com foliões mais interessados em ouvir os maracatus, as marchinhas de antigamente, as lindas músicas locais, eternizadas por tantos compositores de primeira linha. Saímos pouco. Mas fomos à pracinha da Gentilândia, bairro histórico e antigo e nos deliciamos com o Sanatório Geral, com sua animada música. Público tranquilo, muitos professores e universitários, bancários, artistas, comunidade do Bairro, fizeram a diferença na hora de se divertir.



Mercado dos Pinhões em noite de bloco carnavalesco...

No outro dia, nos encantamos com os Maracatus na rua Domingos Olímpio. Não os vimos todos, mas que emoção! Cultura, arte e principalmente, a população local participando ativamente, com suas famílias e suas torcidas, lindo de ver. E no outro dia, para encerrar a folia, fomos ao Mercado dos Pinhões, revitalizado, um espaço todo em metal, artístico, que abriga feirinhas de orgânicos, chorinhos e sambas e acolheu um público jovem e outro nem tanto, muito interessado em ouvir o Luxo da Aldeia e todas as músicas produzidas apenas por artistas cearenses, algumas destas já de conhecimento nacional, gravadas por Ednardo e outros. Para fechar o dia, bem pertinho, na rua João Cordeiro, estava o bloco da Mocinha.

Senti-me no clube do Rio Branco e do Juventus, aos quatorze ou quinze anos, ouvindo as marchinhas de antigamente, lindamente cantadas por músicos locais, afinadíssimos. Podemos sim, ainda podemos, ser felizes. E para esse longo texto não passar em branco, reproduzo uma das receitinhas da Nice Firmeza (tal e qual na cópia que tenho), ainda não testada, publicada no livro citado acima, da Lúcia L. Martins. Aproveite!

Papinha de Anjo (Creme de coco verde, todos repetem)
(receita de Nice Firmeza)

Ingredientes

Para cada 3 cocos verdes (miolo)
9 colheres de sopa de açúcar
1/2 litro de leite de gado

Modo de fazer

Passa o coco, o açúcar e o leite no liquidificador, depois leva ao fogo, mexe até aparecer o fundo da panela. Conserva o creme na geladeira. O Estrigas mistura com outros doces. Esse creme eu fiz porque aqui eu tomava muita água de coco e era preciso aproveitar o miolo.

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Para saber mais:

Plebeu - vide em https://www.facebook.com/PlebeuGabinetedeLeitura, rua Floriano Peixoto, 735, 5. andar, sede da Associa,ão Cearense de Imprensa, Fortaleza. Horário de funcionamento: Seg. a sexta, de 08:00 às 17:00h  

ICA - Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará
(https://www.facebook.com/photo.php?fbid=852265824811606&set=a.617230371648487.1073741837.100000845893444&type=1&comment_id=852298741474981&offset=0&total_comments=15&notif_t=photo_comment)


Nice Firmeza http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/04/15/noticiasjornalvidaearte,3039048/a-partida-da-flor-nice-firmeza.shtml

Estrigas
http://g1.globo.com/ceara/noticia/2014/10/morre-o-artista-plastico-cearense-estrigas-aos-95-anos.html

Fernando França
https://www.google.com.br/search?q=livro+de+fernando+fran%C3%A7a+com+pintura+de+estrigas&biw=1280&bih=699&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ei=iC3qVOCHMcG1sAT2kYLQBg&ved=0CCUQsAQ

Para ouvir a loa da Nação Fortaleza deste ano e a Noite Azul, favor acessar a página do Marcos Afonso no facebook:

https://www.facebook.com/marcos.afonsoii/posts/750718838375851?comment_id=750818628365872&notif_t=mentions_comment


domingo, 1 de fevereiro de 2015

MÃOS DE MULHER

Biscoito de Maizena®(amido de milho) da minha mãe...


Cheguei ao Mercado apressada, com o horário já estourado. A missão,  dada pelos filhos,  já fora parcialmente cumprida desde o dia anterior: quibe (ou quebes ) de arroz e saltenhas fritas já repousavam no congelador, embalados em roupa prateada, engalanados para seguir viagem rumo à Terra do Sol.

Dos muitos petiscos preferidos que o tempo não daria oportunidade de levar,  esses e a farinha foram os escolhidos,  junto com o xarope de guaraná já na sacola.  Na mão, para não ter risco de quebrar, irão os biscoitinhos feitos pela avó, a serem comidos de conta-gotas. Fui correndo à banca do Mercado onde sempre compro a melhor farinha de Cruzeiro do Sul.

Apesar da pressa, encontrei um querido amigo, ocupado em adquirir alguns dos nossos melhores produtos para uma cesta a ser entregue a uma autoridade nacional em visita ao nosso Estado. Enquanto esperava,  sugeri a troca da rapadura já escolhida por ele, filha única ali abandonada e em não muito bela condição,  por um açúcar mascavo  claro, fresco e macio dentro do saco plástico que o acomodava.

Sugestão aceita,  começo a conversar com o proprietário,  senhor Adalberto. Sempre que ali vou, sou atendida pela dona Verônica,  a esposa. Pergunto e converso até mais do que compro, mas ela tem a maior paciência em identificar a procedência de cada produto. Na frente da banca, ficam três ou quatro enormes barris plásticos com a farinha de tapioca, as farinhas branca e a amarela colorida com açafrão, além da de coco, estrela maior. 

Jamais compro farinha sem provar. Sempre peço que ela seja pesada dos barris, pois apesar da ótima qualidade das que estão ensacadas, prefiro ao presentear, saber exatamente o sabor que estou ofertando para alguém querido. E aí,  ao provar da farinha de coco,  de tão crocante, comecei a falar pra ele que estava tão boa que eu tinha certeza que ele havia voltado para o antigo fornecedor.

Explico: apenas uma vez, ao comprar a farinha e provar, percebi que apesar de muito boa, não tinha o mesmo sabor e crocância das outras farinhas que eu sempre adquiria ali. Comentei com a dona Verônica,  que concordou e pesarosa, me informou ter tido um problema com o fornecedor de sempre e precisara adquirir de outro. Não levei a farinha nesse dia.

Hoje, ao voltar, comentei esse fato com o seu Adalberto. E ele, ao me contar a história,  disse que havia resgatado a parceria,  pois havia perdido vendas em função da excepcional qualidade desse produtor. Provei e pedi para ele embalar a farinha de coco. Enquanto conversávamos, ele deslocou alguns dos pesados sacos que decoram o local, que é bem pequeno, abriu um deles, olhou pra mim e disse:

" Quando eu vendo aqui uma farinha, fico feliz. Mas quando eu abro um saco com esse produto com tanta qualidade, parece que tudo faz sentido. A senhora não encontra essa farinha aqui em lugar nenhum. Apenas três produtores a fazem com essa qualidade.  O coco, plantado lá mesmo, é descascado à mão e lavado caprichosamente. Depois é bem ralado em pedaços minúsculos que no momento certo, vão para a farinha e quase se dissolvem. É tudo feito com tanto capricho e cuidado que emociona a gente. Essa farinha vem de um ramal lá de Cruzeiro do Sul, na mesma estrada da fábrica de biscoitos".

Fiquei escutando extasiada. Porque para quem ama o que faz e compreende a importância de manter a tradição e o sabor que nos orgulha e identifica, garantir a qualidade desse produto faz toda a diferença.  Não comprei apenas a farinha deliciosa. Comprei cultura, comprei o conhecimento de décadas e principalmente,  levo com a farinha o amor pelo produto bem - feito. 

Agradeci ele ter aberto o saco enorme de farinha para que eu levasse a melhor possível.  Ele me disse: " E a senhora sabe de uma coisa? Essa farinha é feita com uma pazinha desse tamanho, pequena. E sabia que a maior parte dela é feita por mulher?"


A farinha com coco, crocante, aromática e muito, muito saborosa...

Fiquei absorvendo a informação.  Longe de significar preconceito, tudo o que ele quis me dizer foi que além de todas as outras qualidades presentes, ali também estavam  delicadeza, capricho e envolvimento total. Por isso, para homenagear essas trabalhadoras tão especiais, trago a receita dos biscoitinhos feitos até hoje por minha mãe. Aos quase oitenta anos, dona Marisanta segue firme e forte. Farmacêutica, talvez a primeira no Acre, dirige, capina o quintal até hoje e apesar de não gostar de cozinhar, faz os quitutes mais deliciosos. Os biscoitinhos são disputados no tapa e quase escondidos pelo neto mais velho, que os come devagar. Faça você também, é fácil e com um café fresco, são imbatíveis.

Biscoitinhos de Maizena ® da dona Marisanta

Ingredientes

100 g de manteiga com sal
250 de amido de milho (Maizena)
06 colheres de sopa rasas de açúcar (ou um pouco menos, se desejar)
01 ovo inteiro

Modo de fazer

Misture todos os ingredientes em uma vasilha e amasse com a mão, até ficar bem ligado. Numa superfície limpa, retire porções e enrole como cordões, cortando com a faca em pequenos pedaços, a gosto e passando um garfo em cima para fazer as marquinhas e achatar um pouco o biscoito. Coloque em forno quente, em assadeira untada e polvilhada com farinha de trigo, até assar.

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Banca do seu Adalberto e dona Verônica - Mercado Elias Mansour, Rio Branco, Acre,
parte interna