O filé do Meirelles, com cogumelos e vinho tinto... |
Estive nesta semana na abertura do III Festival Pachamama - Cinema de Fronteira, no Cine Teatro Recreio, em Rio Branco, Acre, Brasil. Artistas, produtores culturais, escritores, cineastas, fotógrafos, músicos, cantores, ativistas, índios, público em geral, crianças, irmãos bolivianos, peruanos, chilenos, argentinos, brasileiros, por que não? Uma grande mistura, um caleidoscópio de culturas irmãs, ricas, belas, profundas.
Um sonho grande do Sérgio carvalho, seu idealizador, que também é cineasta e escritor, e da karla Martins, atriz e produtora cultural, que fica a cada ano maior e mais bonito. O Pachamama nos mostra que é possível ser diferente e na diferença nos reconhecermos. Na sua terceira edição, mais e mais filmes, debates e uma mostra da rica cultura indígena local, com os Yawanawá entoando canções de paz ofertadas pelo cacique Bira.
É a floresta mostrando a cara. Linda cara colorida de urucum e melodia, encantando o público. Na abertura, uma expectativa e tanto: após as falas, agradecimentos e belo vídeo apresentado, com a denúncia relativa aos Guarani Kaiowá, a apresentação musical da Veronica Padrão e da Vanessa Oliveira já dava o tom do que viria em seguida: o filme Paralelo 10, com a presença do diretor, equipe técnica e de produção e os sertanistas Txai Terri de Aquino e José Meirelles, antropólogo e sertanista que tem um trabalho de muitos anos com os índios da região. (veja o trailer oficial aqui: http://www.youtube.com/watch?v=T2XmlV205As).
Pura emoção. Pura beleza de imagens e cores. Floresta em estado bruto, vida em estado bruto. O documentário trata dos índios isolados e de como as frentes de contato da Funai mudam o seu foco e passam a ser frentes de proteção etno-ambientais com a contribuição de pessoas como o sertanista José Carlos Meirelles. Nessa cruzada ele conta com a ajuda do Txai Terri Vale de Aquino, antrópologo mais que conhecido aqui na região pelo seu trabalho com os índios. Proteger os isolados e circular permanentemente pelo rio visitando as aldeias e fazendo uma espécie de mediação com as populações ribeirinhas é a história de vida desse homem simples e forte, que tem a companhia do nosso Terri.
O filme mostra um Meirelles objetivo, cru até. É um relato de quem não tem mais que discutir o óbvio. Estar no meio da mata, levar uma flechada a qualquer momento, atolar barco em rio seco, consertar motor, fazer reunião nas aldeias...a rotina de trabalho é tão diversa quanto dura. E isso o Meirelles sabe bem: o relato meio sem paciência, de quem já ultrapassou em muito e há muito o discurso sociológico e antropológico dos bancos da faculdade é a princípio um pouco irônico.
Mas mostra a profunda solidariedade de quem vive na floresta. Mostra a alegria de receber uma bacia de peixes ainda vivos, garantia de um bom almoço. Ou um veado jovem, morto e dividido de acordo com a lei da floresta. Mas, o mesmo Meirelles de riso fácil tem a coragem de se mostrar por inteiro ao assumir a morte de um índio por pura sobrevivência, na base do cem contra um ou contra três, no seu caso em particular. Matar ou morrer, simples assim. Mas, não menos doído. É uma confissão corajosa, impactante. E com um quê de perplexidade com a própria ação.
Mais na frente, em várias oficinas realizadas com os índios para discutir como proceder com os isolados que roubam e atacam em resposta a qualquer ataque, a onça mostra sua grandeza e diz, com todas as letras que se a proposta dos índios é matar os isolados, eles tem que entender que são brasileiros como qualquer um de nós. Cometerão um crime e como criminosos serão tratados. O exército baixa aqui no outro dia, ele diz. É outra afirmação de impacto, dura até.
A terra é nossa. Mas tem lei. Quando conheci o Meirelles, há uns anos atrás, eu não sabia de nada disso. Estava de volta ao Acre havia pouco tempo e diante do meu amor pela culinária, um amigo em comum, o jornalista Elson Martins nos convidou para um almoço. O cozinheiro seria um grande amigo, sertanista que vivia longe, no meio da mata. Conectado com o mundo pela internet e pelo rádio, mas bem longe da cidade. Um dos pratos do cardápio era um filé na panela de ferro, regado a vinho e cogumelos, delicioso. A panela era dele, especialmente trazida para fazer o prato.
Aquele senhor de cabelos brancos e barba idem não aparenta a fortaleza que tem. Comprei minha panela de ferro no outro dia e uns tempos depois, preparamos juntos um carneiro que era na verdade um bode, como eu já contei por aqui e mais uns tantos pratos, coisa de quem gosta de cozinhar. Suas filhas Paula e Maria, nossas queridas amigas, o chamam de velho do rio. Mas de velho o Meirelles não tem nada, só a barba branca e rebelde. E a sabedoria, coisa para poucos.
Ouvimos dele, aqui na varanda de casa, a história do dia em que quase morre de uma flechada. Os isolados ou "brabos", como eles são chamados, haviam sido atacados uns dias pra trás. Descontaram no Meirelles, que mesmo com arma na mão, não reagiu. Conseguiu tirar a flecha do pescoço, escapou das outras e pediu ajuda.
Uma força tarefa foi montada, com a ajuda do Governo do Governo do Estado e ele foi levado de helicóptero, já quase morto. Ficou bom e voltou pro Xinane, a base da Funai, fazendo o mesmo trabalho. Ver o filme me fez admirar mais ainda a extrema verdade do Meirelles, sua simplicidade e desprendimento. Mas, principalmente sua força. Um relato sensível e forte que o diretor Silvio Da-Rin soube conduzir muito bem. Não deixe de assistir. Compre uma panela de ferro e experimente o filé do Meirelles, você não vai se arrepender!
Acompanhado de arroz com pedacinhos de banana comprida e arroz selvagem fritos... |
Veja também:
No Varal de Ideias, do jornalista e professor Marcos Afonso:
Filé do Meirelles
Ingredientes
1 filé limpo, aparadas as extremidades
Vinho tinto seco, de boa qualidade
1 pote de cogumelos em conserva, já lavados e escorridos
Sal, pimenta do reino a gosto
Alho (opcional)
1 colher de chá de açúcar (se necessário)
1 colher de sobremesa de manteiga (se necessário)
Óleo para fritura
Utensílio necessário
Panela de ferro funda
Modo de fazer
Tempere o filé com sal, uma pitada de pimenta do reino e um pouquinho de alho amassado, se desejar. Coloque numa tigela funda e acrescente vinho tinto de forma a fazer uma marinada. Reserve por pelo menos trinta minutos. Coloque no fogo a panela de ferro com óleo suficiente para fritar (selar) a carne e deixe esquentar bem. Retire o filé inteiro da marinada, coloque na panela e deixe-o fritar rapidamente em todos os lados, apenas para selar a carne. Se o filé for muito grande, pode levar alguns minutos a mais. O ponto certo é de maneira a permitir que o centro da carne ainda esteja bem rosado. Aperte a carne e se estiver muito mole, deixe mais alguns minutos. Tente não passar do ponto, para que a carne não fique dura, deve ficar como um rosbife. Retire a carne e reserve. Jogue o vinho da marinada e os cogumelos na panela, misture rapidamente e prove o molho. Caso esteja ácido, jogue a colher de chá de açúcar e a colher de manteiga, deixe apurar um pouco e recoloque o filé, virando e deixando alguns minutos. Retire a carne e os cogumelos e coloque no prato de serviço, jogando o molho por cima. Espere descansar alguns minutos e só então sirva, cortando fatias finas ou a gosto. Delicioso com arroz branco ou como aqui, acrescido de pedacinhos de banana comprida e arroz selvagem fritos!
Dica: Esquente bem uma frigideira com um pouco de óleo ou azeite e jogue uma porção de arroz selvagem cru. Ele vai pipocar na hora e ficar crocante. Retire e sirva como acompanhamento ou misture ao arroz, para dar uma crocância. A dica da fritura é do chef Claude Troisgros.