Bolo Rei, herança portuguesa deliciosa... |
Sem pretender mudar o mundo com a velha máxima do "Ano Novo, Vida Nova", decidi que eu posso sim, se quiser, mudar pelo menos o que quero. Nem sempre o que preciso, incluindo-se aí diminuir urgente o consumo de pães e doces. Mas, essa decisão já teria que ficar para um outro post...
Às vezes, é preciso mergulhar um pouco na história de nossas origens para talvez entender de onde viemos e porque algumas coisas são tão naturais e prazerosas. Meus avôs, ambos falecidos, vieram de terras distantes e bem diferentes: um cruzou o mar e o outro deixou a proximidade dele e adentrou o país, para chegarem ao Acre e à nossa floresta. O avô materno Aníbal Lopes saiu de Porto, em Portugal, veio para Belém, já no Brasil e no Acre foi um dos primeiros donos de farmácia a se estabelecer em Rio Branco. Era quase um médico e me lembro que uma vez, numa crise de dor no estômago, minha mãe chamou-o para me socorrer. Lembro de suas mãos fazendo massagens na minha barriga, dos lados, com suavidade. A dor foi embora como por mágica e essa talvez seja a lembrança mais antiga que tenho dele.
Vovô era conhecido por sua grande sabedoria. Muitas vezes era chamado de noite para acudir um doente, coisa que nunca se negou a fazer. Em sua casa transitavam muitas pessoas, sempre bem acolhidas. E lembro de, bem pequena, observar os potinhos de violeta genciana e mercúrio cromo, produzidos por ele na farmácia, que tinha aquelas lindas prateleiras envidraçadas bem características. Já mais velho, mudou-se com minha avó para o Ceará, onde ficou até o fim da vida. Meu pai ainda teve no mesmo local uma drogaria, acho que com o mesmo nome, mas não durou muito tempo. Adolescente, fui morar com ele e vovó por um tempo, em Fortaleza.
Idoso, mas muito lúcido e esperto, gostava de caminhar pelo bairro e ir comprar pão árabe e coalhada escorrida em bolinhas, no azeite. O rádio de manhã era sagrado, para saber de todas as notícias. Ele era muito antenado. A xícara de café da minha avó ele arrumava na mesa todos os dias de manhã e quando terminava, dizia: "...vem, mulherrrrrrr", assim mesmo, com o sotaque carregado de sua terra. E ai de algum de nós mexer naquela xícara, grandona e bege, usada pela minha avó para tomar seu café. Delicadamente, ele avisava: "esta xícara é da mulherrrr..."
Bonito até o final da vida, era um exemplo para toda a família. Há dois anos fui a Portugal e visitei o Porto, sua cidade natal, para onde ele, ao que consta, só retornou uma vez depois que saiu de lá. Fiz contato com um primo e me emocionei muito ao ver o hospital onde ele nasceu e imaginar sua história e a decisão de se aventurar em terras distantes.
Imagina sair do Porto e vir para a Amazônia. Belém, num primeiro momento, onde ficou um irmão. E de lá, vir para o Acre, encontrar minha avó em um navio, apaixonar-se e com ela constituir família...mamãe, que nasceu em 1935, é a segunda filha do casal. Antes dela, dona Branca, que nos visitou recentemente, já conta noventa primaveras.
Meu outro avô, Raimundo Castelo Branco Coelho da Silva, saiu de Juazeiro do Norte no Ceará direto para os seringais, no Acre. Primo legítimo do presidente Castelo Branco, até lembrava fisicamente o primo famoso. Quem resgata um pouco dessa história é minha prima, a jornalista Rose farias, que conviveu bem mais próxima dele: "Toda a família veio para o seringal e saíram de lá para a cidade, quando começaram a morrer de malária. O vovô foi proprietário de dois hotéis, históricos. O hotel Madrid, comprado à família da escritora Florentina Esteves e onde hoje funciona a sede da Fundação de Cultura Elias Mansour e o hotel Libanês, administrado pela nossa avó Maria, esta filha de índio com caboclo."
O vovô, me diz a Rose, aprendeu inglês ouvindo a BBC de Londres todos os dias às 4 da manhã. Entre outras coisas, ajudou na construção da Catedral e do Palácio Rio Branco, numa época em que a comunidade participava ativamente. O vovô também teve padaria, mercearia e sorveteria, onde fazia sorvetes e os famosos "cascalhos", massinhas fritas e açucaradas polvilhadas com canela, produzidas com as sobras de massa de pastel. Meu pai fazia todas essas delícias em casa, mais o rabo de galo, massinha de pastel recheada de goiabada, fechada como um bombom e frita. Depois, os rabos de galo eram mergulhados numa calda de açúcar...e comidos quentinhos ainda, com a goiabada a escorrer pelo queixo.
Tenho do meu avô lembranças muito carinhosas. Todos os dias, ainda bem pequena, se fosse para a escola a pé, tinha que passar na frente de sua mercearia. E ele estava lá, despachando. Lembro que parávamos para tomar a benção, eu e algum irmão, já esperançosos de ganhar um saco de balas. Havia uma bombonière daquelas antigas e em meio aos depósitos de madeira com enormes tampas que armazenavam farinha, açúcar e outros víveres para vender a granel, nossos olhos iam direto para as balas.
Vovô sempre dizia para escolhermos e era aquela alegria. Saíamos bem felizes e com as mãos cheias de doçuras. Só tenho pena de não ter aprendido com ele a meter a mão na massa. Mas, para fazer jus ao DNA de família, meu pai sempre foi um exímio cozinheiro, tendo sido sempre ele, enquanto pôde, a cozinhar em casa (mamãe cozinha muito bem, mas não é muito fã), até um AVC fora de rota tirá-lo um pouco do fogão. Mesmo assim, ele ainda faz das suas de vez em quando e é uma memória viva dos pratos que gostava de cozinhar.
Ao pensar nos meus avôs e avós, homens e mulheres íntegros, trabalhadores e fortes, não pude conter a emoção. Tão simples, todos eles e tão verdadeiros em suas histórias de vida e exemplos para nós, seus netos, que os lembramos em momentos de saudade, com muita ternura por todas as vivências que pudemos acompanhar. Esta receita é uma homenagem singela e um agradecimento pelo que eles nos transmitiram, pelo seu legado.
O bolo Rei é típico de Portugal e normalmente saboreado na época de Natal até o dia de Reis, comemorado em 06 de janeiro. É uma iguaria deliciosa, perfumada e que com certeza, será muito aprovada na sua família. Usei como base uma receita da Confeitaria Colombo, mas mexi nos ingredientes, fazendo algumas alterações. Espero que gostem!
Bolo Rei
Ingredientes
500 g de farinha de trigo
40 g de açúcar
10 g de sal
1 ovo
2 gemas
50 g de manteiga
15 g de fermento biológico
200 ml de leite integral frio
300 g de uvas passas e frutas cristalizadas misturadas
300 ml de vinho do Porto
Raspas de duas laranjas Bahia, de preferência
Para a cobertura
Aproximadamente 300 g de açúcar de confeiteiro
Suco de 1 limão, coado (talvez não precise todo, se usar limão siciliano)
Frutas desidratadas a gosto, lascas de castanhas ou amêndoas, damascos desidratados, passas, amarenas (use o que quiser e tiver disponível)
Modo de Fazer
Coloque as frutas e passas que irão entrar na massa de molho no vinho, de preferência 1 dia antes ou pelo menos, algumas horas antes. Reserve. Separe os demais ingredientes. Numa tigela, coloque todo o fermento, um pouco do leite, do açúcar e da farinha (aproximadamente 1/4 xícara do leite, 1 colher de sopa de açúcar e 3 da farinha.
O restante será incorporado à receita). Deixe levedar uns 15 minutos. Numa tigela grande, coloque o fermento já crescido, o restante do leite e açúcar, a farinha, o ovo e as gemas. Misture bem e reserve por uns 30 m. Após esse tempo, coloque o sal, as frutas e passas e vá acrescentando à massa um pouco do vinho em que elas estavam de molho. Talvez não seja necessário todo o vinho. (Ele pode ser utilizado para deixar mais frutas de molho) Acrescente as raspas de laranja e amasse bastante, até que a massa fique bem macia.
Deixe fermentar, coberto com um pano. Após 30 m, faça algumas dobras na massa. Na tigela, puxe uma das extremidades em direção centro e vá rodando a tigela, até completar quatro puxadas, uma para cada lado, sempre em direção ao centro. Reserve novamente, coberto. Faça essa dobra a cada trinta minutos, mais duas vezes. Deixe crescer um pouco, dividindo a massa em três bolas, na própria bancada de trabalho, cobertas com um pano. Após crescerem um pouco, delicadamente faça um furo com os dedos no meio da massa e vá rodando, sem quebrar, para formar uma rosca. Acomode essas roscas em assadeiras untadas e polvilhadas e cubra com um pano. Espere aproximadamente 1h.
Na metade desse tempo, ligue o forno, bem alto. Após completada 1h de fermentação, coloque as roscas e aguarde assar. Nesse ínterim, esprema o suco de 1 limão e junte ao açúcar de confeiteiro (não deixe muito fino, talvez não vá o suco todo). Reserve. Tire as roscas após assarem e coloque numa grade para esfriar. Não deixe na assadeira, pois vai criar vapor no fundo e não ficará bom. Derrame o açúcar com o limão por cima de cada uma, com cuidado. Vá colocando as frutas e castanhas a gosto. Deixe secar um pouco e delicie-se!
Para presentear, espere secar e esfriar bem, embale a gosto e receba os elogios!
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Para saber mais:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bolo-rei